domingo, 28 de junho de 2009

Acostumar-se

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos

e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.

E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.

E porque não olha para fora,

logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.

E porque não abre as cortinas,

logo se acostuma a acender cedo a luz.

E à medida que se acostuma,

esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã

sobressaltado porque está na hora.

A tomar o café correndo porque está atrasado.

A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.

A comer sanduíche porque não dá para almoçar.

A sair do trabalho porque já é noite.

A cochilar no ônibus porque está cansado.

A deitar cedo, e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro

e ouvir no telefone: hoje não posso ir.

A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.

A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo

o que deseja e o de que necessita.

E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.

E a pagar mais do que as coisas valem.

E, a saber, que cada vez pagará mais.

E a procurar mais trabalho,

para ganhar mais dinheiro,

para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma à poluição.

Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.

À luz artificial de ligeiro tremor.

Ao choque que os olhos levam na luz natural.

Às bactérias de água potável.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.

Em doses pequenas, tentando não perceber,

vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.

Se a praia está contaminada,

a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.

Se o cinema está cheio,

a gente se senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.

Se o trabalho está duro

a gente se consola pensando no fim de semana.

E se com a pessoa que a gente ama,

à noite ou no fim de semana não há muito o que fazer,

a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito

porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele.

Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida.

Que aos poucos se gasta e se gasta de tanto se acostumar,

e se perde em si mesma.

- Clarice Lispector –

(Ilustração: Errol Flynn & Joan Blondell)

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