Tenho uma alma muito prolixa e uso poucas palavras;
sou irritável e piro facilmente;
também sou muito calma e perdôo logo;
não esqueço nunca;
mas há poucas coisas de que eu me lembre;
sou paciente, mas profundamente colérica,
como a maioria dos pacientes;
as pessoas nunca me irritam mesmo,
certamente porque eu as perdôo de antemão;
gosto muito das pessoas por egoísmo:
é que elas se parecem no fundo comigo;
nunca esqueço uma ofensa, o que é uma verdade,
mas como pode ser verdade,
se as ofensas saem de minha cabeça
como se nunca nela tivessem entrando?
Tenho uma paz profunda, somente porque ela é profunda
e não pode ser sequer atingida por mim mesmo;
se fosse alcançável por mim,
eu não teria um minuto de paz;
quanto a minha paz superficial,
ela é uma alusão à verdadeira paz;
outra coisa que esqueci é que há outra alusão em mim –
a do mundo grande e aberto;
apesar do meu ar duro, sou cheia de muito amor
e é isso o que certamente me dá uma grandeza...
- Clarice Lispector –
(Ilustração: Sandra Dee)
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