domingo, 28 de junho de 2009

Tenho uma alma muito prolixa e uso poucas palavras;

sou irritável e piro facilmente;

também sou muito calma e perdôo logo;

não esqueço nunca;

mas há poucas coisas de que eu me lembre;

sou paciente, mas profundamente colérica,

como a maioria dos pacientes;

as pessoas nunca me irritam mesmo,

certamente porque eu as perdôo de antemão;

gosto muito das pessoas por egoísmo:

é que elas se parecem no fundo comigo;

nunca esqueço uma ofensa, o que é uma verdade,

mas como pode ser verdade,

se as ofensas saem de minha cabeça

como se nunca nela tivessem entrando?

Tenho uma paz profunda, somente porque ela é profunda

e não pode ser sequer atingida por mim mesmo;

se fosse alcançável por mim,

eu não teria um minuto de paz;

quanto a minha paz superficial,

ela é uma alusão à verdadeira paz;

outra coisa que esqueci é que há outra alusão em mim –

a do mundo grande e aberto;

apesar do meu ar duro, sou cheia de muito amor

e é isso o que certamente me dá uma grandeza...

- Clarice Lispector –

(Ilustração: Sandra Dee)

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